quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

La Cittá Civilittá parte III - "Il Umbriaco"

Transcrição da agenda de Francesco Reale.
19 de Setembro de 1933, 7:30 a.m.

Entra em cena...

Madrugada fria passara, agora é hora do lavoro (trabalho).
Passo rua por rua, olho no olho daqueles homens, reparo em disposição, vontade, valor, moral... O jornal nem chegou às portas do comércio citadino ainda contando histórias do mundo todo, porém, mais sensível para mim parecia o olhar sincero daqueles homens... Um polaco ucraino chegava ao lado do Armazém estacionando com seu carroção coberto de pepino azedo, cebola, batata e já ia descarregando aquelas conservar na bodega mais próxima. O cheiro de vinagre exacerbava-se aos olfatos de todos, os olhos lacrimejavam quando abria-se aquela grande compota no Bar Marieta do Seu Elias, um portuga um pouco arrogante, comerciante tradicional do Largo da Estação.

Sua primazia não era nada ponderava, bigodes rústicos simbolizavam o poder, não sei se era simplesmente minha pessoa ou implicância minha, mas não era somente seu estabelecimento, seu corpo fedia sovaco há alguns bons 5 metros de distância, parecendo que não tomava banho há um mês ou sequer sabia o que era aquilo... A segunda hipótese é mais provável...

Enfim, não seria de meu agrado, mas o porteiro do prédio me recomendou ir até o Marieta, pois lá rolavam as mais promissoras oportunidades de emprego da região. Achei essa afirmação um tanto contraditória com o ambiente daquela bodega.
Passa o tempo e já se avistava a chegada dos trens, Elias reclamava: "Nossa Senhora de Fátima, minha mãezinha, agora vou ter de atender esse pessoal", não entendia sua reclamação, se não queria atender o pessoal que fechasse a bodega. Procurei nos editais do bar se havia algum anúncio de emprego e nada, somente se falava de um tal Baile do Chopp Escuro que ocorreria no sítio dos Hilgemberg. Enfim, sentei num dos balcões, aquele velho torceu seu bigodão e ficou me olhando daquele jeito tradicional dos habitantes princesinos (o olhar de poco vedere):

- Que era pra ti piazote?
- Por enquanto estou esperando um amigo - acanhado respondia a primeira coisa que me veio a cabeça, eu entrava no jogo deles, ao invés de fazer o que devia: eu mentia.

Desconversei, mas ele já me observava dos pés a cabeça como se não devesse estar ali sem consumir nada. Dos fundos do bar, dentre um corredor de grades de cerveja, fechando o zíper da calça até a metade a achando que "assim tá bão", aparece Ele... Parecia estar a dias ali, sendo conservado no álcool e na salmoura do picles azedo, conhecido por todos como Silveira. Ninguém parecia gostar dele, madrugava pelas ruas e já havia perdido todos os empregos possíveis na vida de um homem.

Aquele corredor era mirado pelos olhares de toda classe operária local, ouvia-se murmuros de boca em boca. Ele já havia sido funcionário da estação, na época bem afeiçoado, jovem, foi colocado pra cuidar de uma catraca... Poderia estar ocorrendo o inferno de Dante, ele só deveria grudar seus olhos igual chiclé de bola naquela roleta que fazia téc-téc quando algum funcionário passava ele só deveria dar "BOM DIA", era só isso. Ganhava bem, havia recebido do chefe da companhia uma casa após o primeiro ano de tão empenhado trabalho, os ferroviários o reconheciam pelo seu desempenho de monitorar o téc-téc. Até um dia, em que a cabine onde trabalhava ficou 5 minutos sozinha, aconteceu um roubo na estação, o bandido está até hoje fugindo.

O estagiário Claudir Tochansky caguetou o ocorrido ao chefe da estação que logo foi de punho em punho na gole do uniforme de Silveira o acusando de estar bêbado, de que havia saído para ir a um bar. Silveira por sua vez foi para pronunciar algumas palavras para responder logo foi recebido pelos socos e pontapés dos seguranças da estação, antigos colegas de trabalho seu, logo o estavam enchotado estação à fora aos gritos de "Cala-te vagabundo". Havia sido despejado da cada onde morava, teve sua mobília jogada na rua por ordem do próprio estagiário, quando foi se dirigir a Tochansky afim de entender o que havia ocorrido, logo foi recebido aos socos por um dos carregadores da mobília. Na rua, Silveira assumiu, não o que havia feito, mas do que havia sido acusado de ser... Luterano que nunca havia colocado um gole de álcool na boca, logo se tornou o bêbado mais importunante da cidade.

Noutra situação, foi contratado pela Cerraria Guindanski. A polacada gostava dele, sua função era anotar as carroças com os pinheiros derrubados que logo chegavam para ser serrados na garagem. De manhãzinha indo trabalhar, olhou soturnamente em direção a estação e logo lembrou do ocorrido naquele fatídico dia: "Má eu lembro de que saí pur causa que o póprio..." (a pronúncia do perfeito português do homem que informava o horários dos trens a todos os mercantes da região, logo havia sido deturpado). Quando havia descoberto a verdadeira razão da sua demissão, algo que não ocorrera por culpa sua, logo seu olhar interrompeu seus pensamentos, Tochansky havia assumido seu lugar na cabine, mexia com todas as mulheres que passavam por ali, sua reação a tudo aquilo foi cabisbaixa e humilhada, dizem que se direcionou ao Marieta e pelo visto nunca havia sequer saído de lá.

Histórias como essa, outras piores, colocaram a trajetória daquele laboroso luso-imigrante com controvérsias como embriaguez, prostituição, facadas e ponta-pés. Todos os ali presentes já haviam desferido pelo um tapa na cara de Silveira, humilhado ele não se sentia entretanto excluído, entrava e saia do Marieta achando que todos eram seus amigos. Seu olho azul exalava sinceridade, a sinceridade de um bêbado (umbriaco). Antigamente declamava versos de Luís de Camões, orgulho épico pelas navegações, hoje era um ser perdido nas ruas tanto quanto bebia talvez muito mais quando trabalhava.

Logo se tornou carroceiro. Depois das dezenas de despejos, mas não há como pensar que os outros trabalhadores de carroça gostassem dele. Existe a História de que um deles havia oferecido whisky para ele. O inocente que nunca havia sorvido tal honroso e galante logo se debruçou na rua após secar a garrafa, mal sabia que havia tomado uma mistura insuportável de urina (mijo) com álcool automotivo. Frequentes eram os relatos de brigas onde nosso personagem saia com a cabeça quebrada, bucho cortado. Sua face (faccia) denunciava memórias desses acontecimentos, era como um museu de desgraças, cortes, esfolões, e uma cicatriz na nuca, esse era o seu saldo de mais de 30 anos de embriaguez deplorável pelas ruas de Ponta Grossa.

Naquela manhã, carregava garrafas de cerveja vazias com sua carroça e vendia num ferro-velho perto do esgotão, mas na verdade carregava o conteúdo daquelas cervejas na sua cabeça.

Logo chegava a mim a persona que era. Elias já havia vendido uma conversa de pepino azedo enquanto Silveira chamou sua atenção: "Ei Protuga, não jogue fora essa água salgada", e logo foi tomando a água daquele vidro de forma inssaciável. Vazava aos cantos da boca repugnante líquido, caindo sobre suas camisa desabotoada e surrada. O pó de sua vestimenta, inclusive, denunciava que aquele ser havia perambulado pelas ruas noturnas e solitárias da Princesa dos Campos. O rastro de poeira colocava à vista de todos, ele havia repousado seu corpo sobre alguma sargeta da cidade.

Seu cheiro fétido não destoava naquele bar, os salames esverdeados dependurados por cordinhas naquele varal sobre o balcão pareciam exalar um odor ainda mais desagradável e putréfico. Os comentários proferidos daquele homens não eram dos mais agradáveis, algo prescrito de um ser que já estava empadado em vinheto barato e vinagre azedo com sua barriga a mostra (por estar com a camiseta levantada sobre ela). "Olhe esses vagabundos do sindicato aí, querendo cobrar mais direitos só porque tão de ferroviário aí tudo ponposo, esses cara de sindicato são tudo uns bêbado". Toda aquela imagem do nascer do dia da classe operária, unida por seus braços, em seu semblante laboroso e desmorecido foi quebrada nas palavras daquela esbórnia figura.


Em meio a seu trabalho, carregando uma grade de pilsen. Logo havia caído de bêbado em frente ao balcão, não havia sobrado um casco, o chão do bar parecia um carnaval. Um dos integrantes daquele espetáculo gritou: "Poooorco, tinha que ser", mas essa não foi a única resposta, logo Silveira foi arrastado e chutado para fora do bar todo cortado pelos cacos de vidro sem poder se defender. Um dos frequentadores do bar logo saiu sem pagar, dando como desculpa o ocorrido.

domingo, 25 de outubro de 2009

Meia Noite Cigana em sangue

Relato de um Tropeiro de Viamão, 13 de Outubro de 1922.

Ponta Grossa, um beco perto ao Largo da Estação, 11:46 pm.


Barba afeita, saindo do hotel, noite fria avisto uma fogueira, me corre nos ouvidos os gritos escandolosos que combinavam-se ao som das batucadas de uma viola marota. O fétido odor de creolina se fazia representar nos vagões estacionados. Mais uma vez a visão do horizonte das ruas violentava minha visão, eu não fugia impune naquele vento que mais parecia um minuano, como se estivesse meio aos birivas (moradores da cerra).

A tropeirada invadiu o centro da cidade civilizada, juntamente com uma porção de personagens do Circo Stefanovitch que estava instalado ao leito dos trilhos indo pra as Oficinas (o bairro mesmo). O cheiro de vodka ucraniana e de carne mal curtida exalava aos arredores, a patrulha sabia o que acontecia, mas esperava o momento certo de intervir. Aquele beco parecia o Bunker dos vagabundos.

"A la pucha", eu a a vi, uma odalisca zingara (mulher cigana) começou a se desnudar ao olho de todos os homens que por ali passavam, sua badana (pele) era macia, una chinoca buenacha. Para além do rodeio daquela tropa em torno da fogueira, famílias ali passavam e viam com desprezo e asco vomitante o que me agraciava ver, aquela pinta ao lado de sua virilia. Tão sobressalente ao seu corpo morenado mouro. Aquele pontico provocava as maiores sensações no meu espiríto, sua honestidade era provada naquele sinal, dançava ela, dançava com toda inocência em meio a seus amigos que não possuíam um olhar pervertido sobre uma de suas irmãs. Aquele sinal da identidade se combinava ao seu cabelo liso escorrido, caspento em suas raízes e oleoso por todo seu comprimento.

A admiração daquela pintura paisana foi interrompida ao ladrar dos cachorros, anunciava-se... a caravana chegara, descendo o cacete em todo mundo, não se poupando frente a anões de picadeiro, ao palhaço ainda maqueado ou a velhos racticos... O sarrafo desceu, a pelea foi buena, o pau comeu, paulada na cara, chute no estômago, era uma luta bem desproporcional.

A caudilhada (polícia) carregava a bandeira nacional, estavam em 15, enquanto aqueles corpos desfavorecidos estavam em 7... A bruacada (gente feia) apanhou que nem guri grande, os uniformes azul-anis contrastavam com o sangue que escorria, a poeira levantava naquela cidade embarrada pelas chuvas da primavera. A carroça-camburão levou todos, até minha saudosa china (mulher bonita) e sua pinta sobrelevada.

*O relato é inspirado num boletim de ocorrência que se encontrado no acervo do Laboratório do Bloco de História da UEPG.

sábado, 24 de outubro de 2009

A verdadeira busca de justiça pelo povo.


Relato de um morador a Francesco Reale que por sua vez escreveu em sua agenda o acontecido.

22 de Outubro de 1931, em frente a Mercearia Marieta, 09:56 pm.

O amanhecer cívico. Em frente a estação ferroviária. Saindo de um bar... rasgando a camiseta, ele gritou: Essa é a Prostituta dos Campos Gerais (Le Prostituta dos Campos Generales). De logo, um tiro fora escutado, todos se alopraram correndo, se jogaram ao chão, enquanto aquela carcaça fétida de Vodka podre (Kislla) se atolava no barro ao lado de um dos trilhos.

Aquela morte logo fazia sentido, um curitibano, ali procurava emprego e por não ter conseguido resolveu se absorver um líquido da mais pobre fermentação produzida e blasfemar contra Ponta Grossa. Seu estorvo foi no bar, falou alto demais numa Terra Civilizada (Terra Civilizzata). A rivalidade se pintava nas cores daquele sangue carcamano que escorria e se exalava no mal hálito dos seres que discursavam em cima de uma suposta razão da ação praticada.

Um velhote com uma camisa mal-abotoada, com um chapéu de palha e uma galinha embaixo do braço passa em frente ao corredor dos vagões e grita: "Que qué isso Meu Deus?!" e sai correndo.


O comércio todo logo fechou enquanto apitava uma Maria Fumaça, antes mesmo de aquele defunto exalar sua podridão pelos arredores. A polícia logo apareceu questionando e fazendo o inquérito. Seu Elias, proprietário daquele insalubre estabelecimento carnicento, português daquelas quebradas, assumiu de peito aberto. Não fora preso, comerciante aqui é valorizado (valorizzato), o sindicato protege, né?!

Enquanto descobriram que o mau da história estava esborrachado ao leito do progresso, a patrulha apagou o inquérito dizendo que não estavam em defesa de vagabundos de fora. "O seu Elias tá certo", "Nada de gente de fora por essas bandas", "O povo de Curitiba não é ordeiro", "Brasil!!!"... Esses foram os dizeres naquele pestanejar de manhã, reproduziam a exacerbação enquanto eu escutava as portas dos "Secos & Molhados" abrindo, a procura de justiça enflamada pela espada na mão da Estátua da Liberdade!

Prostituta?! Tudo aquilo contra uma palavra pronunciada em meio àqueles dentes amarelados e aqueles bolsões de pus nos lábios, um discurso regionalista, pautado na ordem e não no caos alheio vindo dos lados de Curitiba. a Ordem se estabelecia enquanto o varredor municipal vinha com a carroça rabecão para desovar o corpo num dos potreiros do Coronel Munhoz, uma esbórnia.

Vazaram na braquiara alguns pivetes engraxates, os patrulheiros do quarteirão abandonaram aquela mancha de sangue fedendo escroto alcoólico para promover a ordem contra a juventude transviada que trafegava arruaceiramente, desordenadamente, brincando e fazendo das ruas daquela cidade um verdadeiro recreio. Naquele dia, eu vi, meio a tudo que ocorreu, a Estação parou quinze minutos enquanto exalavam os pinheiros naquela primavera...

*Esse relato é inspirado em boletins de ocorrência encontrados no Acervo do Laboratório do Bloco de História.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A Moral Cristã e a Revolução: Divididos no espaço-tempo.

Não sei nem o nome da rua. Minhas lembranças dalí foram outras.
Mas os leitores irão reconhecer. Trata-se de uma zona em que muitas zonas habitavam. Era quase um país. E alí o povo tinha diversão. Podem chamar de puteiro, eu chamo de boteco do prazer. Não importa - nem a mim nem a elas - se alguém não gostava, se escandalizava, se sentia violentado: se alguém não gozava.
Elizete trancava meus membros inferiores - todos os três - com suas cochas moles e seu suíngue. Sua pele enrugada, sua boca de boquete, seu cabelo oleoso, e o cheiro ruim que estava no ar até me excitavam. E eu pedia mais uma dose, enquanto do outro lado, do lado de fora, as pessoas fingiam que suas genitálias não estavam em chamas. É claro que estavam. Mas eram saciadas de outra forma: no aconchego de seus lares. Eu não. Eu e muitos outros - viajantes, gente que acabara de sair dum trem e já vinha correndo para dar uma bimbada; pais de família. Alí acontecia a revolução. Mas ao sair da porta da boate, as vidas continuavam as mesmas. O desejo voltava à normalidade, as hipocrisias também. As mentiras eram as mesmas, os preconceitos. O ódio pelas vagabundas. Mas naqueles momentos mágicos, no frenesi de uma cavalgada gloriosa, numa corrida profissional, a vida era outra. Naqueles momentos as classes eram duas: pênis e vagina. E, olhem só que ironia! Estavam em harmonia...
Voltando para a cama das esposas, os honestos e polidos cidadãos de nossa cara cidade davam um beijo de boa noite na testa das amadas, e estas pensavam caladas "cheiro de trepada". O sono daquele momento era o sono dos inocentes. O sono dos que fizeram a revolução. Aqueles que, agora, no leito conjugal, dormiam da forma mais civilizada. A selvageria estava lá fora. A selvageria estava lá dentro: dentro dos botecos do prazer.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

La Cittá Civilittá parte II - "De la piazza a lo Inferno"

Escrevendo sobre a Agenda, 17 de Setembro - 02:40 am.


"Da nossa vida, em meio da jornada,/Achei-me numa selva tenebrosa,/Tendo perdido a verdadeira estrada."
- INFERNO: Canto I, linhas 1-3

Segundo dia. Seguindo a jornada civilizatória, me admirei nessa noite com a piazza Barão do Rio Branco, pessoas faziam o chamado footing-noturno (caminhada), crianças brincavam no parquinho, os jovens mostravam sua juventude, belas donas se exibiam ao relento da noite (e isso foi o que mais me chamou a atenção)...

Repentinamente, um susto, o ser era corcundo (gobbo), boca torta (bocca torta), baixa estatura, me agarrou pela mão e não resisti... me levando até o outro lado da praça. Parecia que eu deveria ver aquilo... Aquele corpo manco de uma perna me levou até o outro lado da praça, longe dos balanços e da máquina de algodão doce.

O lado escuro, ali se refugiavam seres noturnos, um olhar triste de um mendigo bêbado, dois velhos usavam suas mãos para apalpar as prostitutas colocando moedas entre suas pernas, gemidos corriam incessantemente de trás de das árvores escrustadas, crianças vendiam balas naquele lugar que a minha visão era repugnante. Os berros incessantes de um pastor reformador protestante e calvinista que acabara de chegar a cidade parecia a última esperança daquela porquice.

Uma Sodoma, algo desmerecido, esquecido por Deus ou criado por ele para abrir meus olhos...

O corcunda desaparece. Ratos fugiam aos meus passos, o parquinho já não era mais avistado, eu fugia de um dos círculos do Inferno de Dante(1) enquanto todos aqueles demônios gargalhavam um hálito putréfico perante meu medo. O subterrâneo exalava sua prostituição. Naquela paisagem meu anterior sorriso havia sido cerrado e meu olhar passava a me evidenciar algo que não queria acreditar, ali se desmistificava, se desmentia, a cidade civilizada.

Acordo na madrugada. Seria mesmo um pesadelo?


___________ 1- ALIGHIERI, Dante. INFERNO em: A divina comédia.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

PONTA GROSSA DE ONTEM E DE HOJE





La Cittá Civilittá parte I - "Las Buonas Venitas"

Hotel Planalto dos Campos Gerais - Quarto 13 - 15 de Setembro de 1933, 8:00 pm.

Russos, poloneses, ucranianos, alemães e o italiano era eu. Esse era o cenário daquela Maria Fumaça, um cenário que abrangia parte do mundo, do velho mundo. Uma nova oportunidade agora, Brazile, precisamente uma cidade que me chamou a atenção pela belíssima construção ao alto de um morro, una Cattedrale que me fixou no olhar suspiros e lembranças da minha infância e até me lembrou Roma.
Não... Aquilo não me lembrava perseguições que sofri na Itália, a saudade da família era devera, mas o labor me chamava...

Cheguei hoje a "Cittá Civilittá", descido do trem vindo de Santos, me deparo com algo um pouco (pizzico) diferente da propaganda feita para trazer os imigrantes pra cá. Me agracio com a ESTAÇÃO FERROVIÁRIA... Imponente e elevada, me questionei: "Quantos trabalhadores (lavatores) como eu ela já não trouxe"?
Como essa cidade deve tratar bem o trabalhador de fora, como deve ser hospitaleira, chega ao ponto de ter tão linda Estação sobre os trilhos...

Cabelo comprido, boina, calça xadrez, camisa regata e um sobretudo serviram de desconfiança ao Chefe da Estação que me olhou de um jeito estranho e de atravessado.
Pairou bem o dia, logo quando chego em frente ao Largo do Ármazem de Cargas para me alistar como novo morador da vila, ouço um estrondo, a Fábrica de Fogos disponibilizou 50 caixas de rojões para o aniversário da cidade.

Aniversário da Ponta Grossa. A cidade fez um desfile, cavalos, políticos (ambos muito semelhantes), tropeiros em suas mulas, comerciantes, industriais... todos desfilavam numa Boulevardzona que cruzava a estação... De início parecia algo brilhante aos olhos, mas olhando melhor, percebia o fiasco que se estunchava em carroças e na exacerbação do sentimento nacionalista. Orgulho de erguer um tal Getúlio ao poder, aquilo me dava medo e muito me lembrava as celebrações de honra a Mussolini nas planícies de Predapio...

A imagem daquele homem era exageradamente erguida, mas ao contrário do que parecia, a população recebia aquilo de outra forma, ela não estava feliz. Parecia entender aquela mensagem como algo estanque, que deveria ser aceito guela abaixo, parecia obrigada a estar ali... E o que anteriormente era um desfile Cívico se tornou, abaixo dos meus olhos, melancólicamente, uma passeata assemelhada a um golpe militar. Aí vi um standarte: "OS MILITARES DA CIDADE CIVILIZADA SAÚDAM A REVOLUÇÃO DE 1930", era o 13o. Batalhão de Infantaria...

Fiquei com medo!!! Corri, lembrando (1921) daquela assémbleia onde os "camicias neras" (1) espancaram a mim e a outros cameratas (camaradas) só por estarmos participando das atividades do sindicato dos ferroviários. Esbarrei numa linda signorina e desde já disse: me escusa (desculpe-me). Contraditória a sua beleza, reação foi avessa, nada falou, simplesmente me olhou dos pés a cabeça, um olhar de pouco olho (poco occhio), um olhar de desprezo. Olhei para o outro lado da rua, vi uns ragazzos com umas camisas verdes me encarando de forma intimidadora.Resolvi continuar andando e fugir daquele ambiente nefasto.

Em São Paolo tanto parlavan de una tal Rua XV, e foi lá que fui parar. Com os joelhos estancados de subir uma ladeira, resolvi pedir parar num tal "Café Boulevard". Muito mal atendido, pelo menos o café estava com um bom aroma. Existiam alguns granfinos naquele lugar, todos, todos (!!!) me olhavam dos pés a cabeça, é, é, aquele olhar poco occhio, respeitei pois parecia algo típico da população princesina... tratar os outros de tal forma, só pelo olhar, dizendo "você não é daqui". E foi aí que fiz meu primeiro conhecido (como eu queria que tivesse sido aquela bela dona), um inglês, Stuart Julian.

Stuart possuía um relógio de bolso e olhava pra ele a cada 2 minutos. Seu cavanhaque era coçado e sua preocupação era evidente. Ele quis me tirar de lá, dizendo algo do tipo: "aqui não é lugar pra operário (workman), olhe seus trajes". Foi saindo que me deslumbrei com uma construção naquela esquina, o CINE TEATRO ÓPERA... Ahhh como eu gosto dum bom filme... Mas lá não pude entrar, apresentava-se já de manhã uma ópera só para a elite da cidade.

Um outsider. Foi assim que Julian me definiu, pelo menos ele disse que Ponta Grossa me trataria como um. Até gostei do meu novo apelido (soppranome).
Mas ele disse que todo imigrante era tratado daquela forma ali, me deixou na porta do Hotel onde fiquei de me hospedar até encontrar o dormitório...

Meu nome é Francesco Reale, imigrante siciliano que veio buscar na cidade do corredor do gado uma forma de sobrevivência com charqueadas. Além de ter sido ferroviário, aprendi a lidar com madeiraria, mas agora me apresento como escritor nas horas vagas. Desejo falar de tudo que vejo nessa Cittá Civilittá...

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1 - Os camisas negras foi um movimento fascista liderado por Benito Mussolini na Itália Fascista, responsável por perseguir sindicalistas e intelectuais durante seu regime.